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| Foto: JS |
Viver no mundo do cinema significa muito
mais do que actuar. Significa saber reencarnar-se na realidade de um outro ser
que o vemos caminhar sobre os nossos olhos, e acima de tudo abster-se de estereótipos
quando a necessidade é cantar uma realidade que se difere da nossa. Mas este
sonho de ser-se cineasta, ser actor, cantar realidades e através de filmes
mostrar as vivências de diferentes povos carrega consigo certos preços. Mas
acima dos custos em ser-se cineasta, há vontades, sonhos e obstáculos que
pincelam os trajectos de quem sonha em encontrar-se numa outra dimensão: A
dimensão do ser-se diferente, realizar e actuar.
Inquieto em querer saber sobre o cenário
actual do cinema em Moçambique, dificuldades por parte dos que amam a 7ª arte,
seguimos os passos de Júlio Silva, um autêntico amante desta arte, que durante
a nossa entrevista fez algumas confissões e segredou-nos sobre os seus próximos
passos. Acompanhe a nossa conversa.
Frente aos Factos (FF): Vive-se de cinema em Moçambique?
Júlio
Silva (JS): Eu vivo de cinema. Além de estar com
outras actividades no mundo da cultura, cinema é uma das actividades que me
trazem rendimentos que nalgum momento servem para alimentar meus projectos.
Aliás, importa referir que é mesmo pelas minhas produções cinematográficas que
vou alimentando os meus sonhos.
FF: Quais críticas faz ao cenário actual do cinema em Moçambique?
JS:
Em Moçambique temos bons realizadores.
Principalmente os da velha guarda que já tem muita experiência e já fizeram
muitos trabalhos em vários níveis e outros tem ganho prémios lá fora. Mas mesmo
com isso, sinto que todo mundo fica á espera dos patrocínios. Por isso ficamos
refém dos patrocinadores. A arte de fazer cinema, de sonhar, começa a ficar
condicionada por estas dependências.
É certo que o cinema envolve muita gente,
muitos custos. Mas nós poderíamos estar mais dentro de uma realidade local como
outros países (Quénia, Nigéria, etc), onde fazem cinema local, de baixo custo e
que a população encontra-se no cinema e as pessoas vivem de cinema, sejam
realizadores, camera-men. Todos vivem de cinema. Estes exemplos fazem-me dizer
que podemos fazer um cinema de baixo custo, um cinema local que problematize as
nossas vivências e que acima de tudo nos identifique como moçambicanos. Estou a
falar de um cinema feito para o povo, com o povo e falado na língua do povo.
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| Foto: JS |
FF:
Tem alguma formação sobre cinema ou
trata-se simplesmente de um vício que carrega consigo no DNA?
JS:
Eu sempre fui um homem das artes e ligado as artes. Estive a produzir e a
realizar na Televisão de Moçambique um programa musical chamado Vibeat. Em base
era um programa de muita audiência a nível televisivo. A partir daí surgiu-me a
vontade de fazer um filme para o pessoal. Foi aí que o bichinho do cinema me
mordeu e tornou-me viciado e apaixonado pelo cinema.
FF:
Quando olha para a sua trajectória,
quais os sonhos que ainda reserva para o futuro?
JS:
Eu sou muito realista. O meu cinema é para o meu povo. Se por acaso o meu filme
ir além fronteiras é uma mais valia para nós. Mas o que interressa-me é contar
as histórias do povo, os mitos, ficções, sonhos, aquilo que eu acredito dado a
minha vivência como investigador cultural. Na senda disso, importa referir que
ando por todo o país e faço investigações
que transformo em relatórios. Tudo sobre a cultura, sobre vivencias dos
nossos povos, e em base nisso é que faço os meus filmes.
FF:
Pode-nos falar do Xikwembo? Como foi
produzir este teu primeiro filme?
JS:
Foi um sonho de fazer um filme para o povo. Depois foi escrever uma história (o
meu primeiro guião). Por em prática um guião é que é complicado, porque o meu
filme envolvia o obscurantismo, a natureza, o mato, cobras e muita coisa. No
papel estava muito bonito, mas na prática parecia pouco difícil a sua realização.
Xikwembo foi um projecto que durou seis meses
a filmar. Conseguimos filmar tudo que queríamos.
Se digo que estou satisfeito é por ter sido
o meu primeiro trabalho e também porque foi uma obra muito aceite, apesar das
poucas condições que eu tinha.
FF:
Dizia que algum cineasta tem-se limitado
nos pedidos de patrocínios para a realização dos seus filmes. Nos seus
trabalhos, tem pedido patrocínios?
JS:
Depois de eu ter batido muitas portas e tais portas não serem abertas, por
existirem patrocínios pré-definidos para determinadas pessoas, fica complicado para
nós que surgimos agora (da nova geração) conseguirmos esses patrocínios. Mas o
primeiro filme que eu fiz (Xikwembo), dado ao impacto ao nível popular,
consegui criar um fundo de maneio para a produção de outros filmes. Então, os
filmes foram se pagando a si próprios. Acabei desta forma criando uma rede de
cinema, na qual um filme paga a produção do próximo filme. Assim é que consigo
trabalhar, produzir meus filmes sem ter que mendigar. Porque por vezes pedir
patrocínios é uma situação embaraçosa e de mendigagem.
FF:
Há fragilidades no cinema moçambicano. O
que está a faltar afinal para que Moçambique concorra com outros países que bem
se destacam a nível das produções cinematográficas?
JS:
Primeiro é que devemos fazer o nosso cinema. Quando emitamos ou copiamos os
outros, nunca vamos ter a nossa identidade. Penso que devemos fazer o nosso
cinema, pensando no nosso público. E sermos amantes do cinema e não comerciantes
do cinema, isto porque muitos vê no cinema a oportunidade de ganhar muito
dinheiro. Não estou a dizer que não se pode ganhar dinheiro com o cinema, o que
pretendo dizer é que se deve ser amante de cinema, gostar de contar e realizar
uma história.
FF:
Poderemos um dia ter o nosso Hollywood em Moçambique?
JS:
Nós temos aqui uma mina de ouro a nível de actores. Temos actores fantásticos,
gente escrevendo histórias maravilhosas. Se todo o mundo, que ama o cinema, começasse
a investir mais na criação de suas ideias, teríamos bons resultados. E a partir do momento que conseguimos estar bem e
felizes com os nossos sonhos, tudo acaba correndo bem.
FF:
Olhando para a qualidade dos seus actores, acha que eles estão preparados para
competir com outros actores internacionais?
JS:
Eu tenho actores interressantes, porque quando apresento meus filmes lá fora,
todo mundo fica convencido que os meus actores são super profissionais. Por
isso digo que temos cá no país uma mina de ouro a nível de actores.
FF:
Há um custo que se paga por se ser cineasta em Moçambique?
JS:
Claro. Primeiro custo é inveja dos outros. Acredito que no meio das
dificuldades, por vezes criadas por outros devemos nos impor para vencer e
alcansarmos os nossos objectivos. Por isso não me prendo em olhares negativos,
procuro novas formas de fazer o meu cinema e alavancar as minhas ideias para
ter bons resultados.
Estamos num país onde predomina muita
inveja por parte dos outros. Há pessoas que não ficam felizes com as vitórias e
sonhos dos outros, por isso andam sempre à procura de razões para os destruir e
não os construir.
Segundo, é nós sermos capazes de amar a
arte de tal forma que consigamos absorver o negativo que existe. Com estes dois
factores, se formos fortes espiritualmente e decidis naquilo que queremos, tudo
torna-se mais fácil.
FF:
Há um segredo para ser-se um bom actor?
JS:
É viver intensamente o papel que lhe é concebido. É deixar de ser ele para ser
o personagem que pretende recriar. O actor é aquele que vive intensamente o seu
papel, isto porque se se quiser fazer o papel de um maluco, temos que ir ver
como um maluco actua na estrada, por exemplo, para saber dos seus gestos, a
forma de ser e de estar, a forma como ele se destaca no mundo e acima de tudo, a
forma como ele se identifica no meio da sociedade.
FF:
Tem feito diversas investigações. Tais investigações revestem-se em vídeos que
são rodados em diversos canais televisivos, como a RTP e a TVM, por exemplo.
Como tem sido a repercussão da sociedade face aos seus vídeos?
JS:
Eu tenho feito pesquisas sobre danças, instrumentos tradicionais e música a vários
anos. A STV também por vezes passa meus
trabalhos de investigação. Fico satisfeito porque a RTP passa diariamente meus
vídeos e há estudantes que já fizeram mestrados com base nas minhas
pesquisas. Eu fico feliz porque estou a
contribuir para a divulgação cultural e a formação de muita gente.
FF:
Se tivesse que dar um conselho ao que tem medo de sonhar e seguir seus sonhos,
qual seria?
JS:
A vida é feita de sonhos. Quem não tem sonhos não consegue viver, porque nós
temos que ter um sonho e o tentar realizar. É claro que mediante o sonho vamos
encontrar muitas barreiras, por isso temos que ter um foco ao seguirmos nossos
sonhos. Temos que ter uma certeza de que vamos vencer, acima de tudo.
FF:
Para quando o lançamento do próximo filme do Júlio Silva?
JS:
Este ano vou lançar dois filmes, que são o ̎Xikwembo 2̎ e um filme que fala da
escravatura em 1800. Com este segundo filme quero mostrar que Moçambique passou
também de um período de comércio de escravos.
Importa referir que durante a sua corrida
no mundo da sétima arte e da cultura, Júlio
Sila tem se destaco por diversos motivos, dos quais destacase
o facto de ser um juri num dos concursos culturais. Mas no meio destes desafios
que enfrenta, desenha uma nova rota e escreve um novo guião que lhe faz contar
novas realidades.
Actualmente tem-se ocupado com a
realização de um filme caboverdiano e um documentário em Portugal sobre a integração das
comunidades africanas nas orquestras sinfónicas.
Na sua lista de filmes constam o
̎Chikwembo 1̎, ̎Lágrimas̎, ̎A Terra a quem pertence̎, ̎Montanha misteriosa̎,
̎Regresso do Espírito̎ e ̎A Fofoqueira̎.
Sérgio dos Céus Nelson